quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Passarim cantô no nim.






E aê vovô!
Como vai vosmicê?
- Mior do que ontem fio amigo, aquelas dô nas junta, cada dia mais trabaioza, mas com a dignade de Deus vamu caminhando em favô de nois mesmo.

É vovô, fico pensando no tempo, imaginando quando o senhor era novo, nas suas vivencias, seus planos, alegrias e esperanças. Valeu à pena vovô querido?
- Craro mizifio, esse nego que vus fala, nasceu na senzala, que nem Passarim em nim fechado. Já nasci preso na gaiola, que nem o azulão que o sinhozinho cria anos. Quem num pode cum mandinga* não carrega patuá, se Deus quis anssim, mio deixá do jeito que tá.

Mas o senhor nunca pensou em liberdade, em sair da vida difícil que o senhor já havia experimentado desde o nascimento?
- Prá simplificá mizifio, vou cunta pro cê, uma pequena historinha. A historinha de um Passarim que nasceu dentro de um nim fechado, que suncês chama de gaiola. Acustumado a beber água boa e com cumida farta todos os dia, o bichim ia que nem boi nu pastu. Conduidu de dó, o dono dele quis fazê um binificio pu pobri du bichim e numa bela manhã de dumingo sortô o danado que saiu vuando, vuando e vuandu que não parava mais. Quandu chegô dinoiti, o bichim pousou numa arvori e ficou lá alto paradim qui nem uma istátua. Coitadu num tava custamado com tanta nuvidade. O tempu foi passandu e o passarim foi levando sua vidinha modesta, lutando contra as difircuidade e pensô no tempo que havia parsado sozinho no matu e arresorvel vortá pro nim. Lá chegando, quando seu dono viu o bichim, viu que ele tava magrim, meio dispenado e com dó do bichim vorto com ele pra gaiola. No ortro dia, bem cedo o dono foi cuidar du bichim e deparou com ele quase morto. Num disispero e num tentar acurdi, o dono moiô a cabeça du bichim e ele bem mólim deu seu ultimo suspiro e ultimo canto, oio o dono nos ói e morreu. Eta coisa linda, o Passarim cantô nu nim.

Me desculpe vovô, mas não entendi bem a moral desta história?
- Deixa qui eu explico, mizifio! Deus tem um projetu pra cada um de nóis, num importa o que você faça di sua vida, mas o projeto vai ter qui ser cumpridu. Pur mais que suncê voe pu mundo ao fora, vai ter que vortá um dia pra fonte di ondi suncê saiu. Nós tudu vem du céu e é pra lá que nóis vai vortá, nascer na senzala ou na gaiola, pôca diferença faiz na nossa vida, pois obrigatoriamente nóis vai têr que cantar pra subi. Morar da istória, o corpo vai embora u qui fica é a lembrança, as veiz até do nosso “canto”.

Ao querido Pai Arruda e suas histórias fantásticas.

* Mandinga no Brasil Colonial era a designação de um grupo étnico de origem africana, praticante do islamismo, possuidor do hábito de carregar junto ao peito, pendurado em um cordão, pequeno pedaço de couro com inscrições de trechos do Alcorão, que negros de outras etnias denominavam patuá. Depois de feita a inscrição, o couro era dobrado e fechado costurando-se uma borda na outra.


Por serem mais instruídos que outros grupos e conhecerem a escrita, eram geralmente escolhidos para exercer funções de confiança, dentre elas a de capitão do mato. Costumavam usar turbantes, sob os quais normalmente mantinham seus cabelos espichados. Diversos negros de outras etnias, quando fugiam, também espichavam o cabelo e usavam o patuá em um cordão junto ao peito, porém sem as inscrições, para tentar disfarçar o fato de não serem livres. Mas os mandinga tinham o costume de se reconhecer mutuamente recitando trechos do Alcorão uns para os outros. Caso o negro interpelado não recitasse o trecho correto, o capitão do mato de etnia mandinga, capturaria o fugitivo imediatamente. Outras etnias viam, nessa mútua identificação, alguma espécie de magia, e muitas vezes atribuíam ao patuá poderes extraordinários, que permitiam ao mandinga identificar os fugitivos.