quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O Caso do Negro Sonhador.


(Conto)

Em 1789 existia na região de Ouro Preto uma fazenda cujo dono era um explorador da pecuária e do comércio de minerais daquela região, possuindo inclusive, uma mina de topázio imperial em franca produção. Era comum naquela época a existência de escravos humanos, os quais trazidos da África deixaram gerações e mais gerações de filhos, netos e bisnetos neste nosso querido país, mesmo porque, ainda não tinham sido promulgadas as leis que proibiam o tráfico de escravos para o Brasil, sendo a mais famosa delas a Lei Eusébio de Queiroz, que só foi publicada em 1850.

Dono de uma propriedade abastada, Miguel Gomes, filho de Portugueses, vindos para estas terras por incentivo do próprio Governo Português, era um homem bruto e criado nas piores condições que o trabalho na terra poderia oferecer. Se era bruto por um lado, Miguel era mais do que justo em suas decisões e atitudes, o que lhe valeu o apelido de Mestre Doutor. Não pelas letras, pois possuía pouca instrução, mas pela facilidade de decidir algumas pelejas, utilizando de sua intuição e saber que a própria vida lhe deu.

Miguel era casado com Maria das Dores, filha de brasileiros de origem Portuguesa e possuidores de grandes vultos materiais. Moça simples e prendada Maria das Dores, havia dado a Miguel dois lindos filhos que se ambientavam e cresciam com a pureza dos ares e refrescos naturais da fazenda onde moravam.

Naquela mesma e comum família do século XVIII, era comum a existência de escravos, cujo nome era impróprio, pois Miguel dentro de sua linha de justiça, os havia alforriado e dividia com eles parte dos lucros obtidos com a produção pecuária e os rendimentos colhidos na mina de topázio. Não fosse isso, dentre estas figuras podemos destacar um escravo que pela dureza de seu corpo e pela envergadura calejada de sua fisionomia, poderíamos identificá-lo já bem próximo dos 70 (setenta) anos. Seu nome Pedro em homenagem ao pai de Miguel seu antigo proprietário.

Figura carcomida pelo tempo, mas de amor e sabedoria extrema, poderíamos dizer que Pedro era para Miguel igual a uma música inspirativa. Nos momentos de dificuldade, era sempre Pedro que ajudava a Miguel a se desvencilhar das armadilhas de deste mundo cão, que por dicotomia é tocado por homens. Quando mais novo e em condições de acompanhar Miguel, era Pedro que sempre acompanhava o patrão em suas viagens e idas para lugares mais distantes. Com o tempo e já cansado da luta foi dado a Pedro uma casinha humilde, mas bem acomodada para aquela época, e, na qual viviam alguns de seus mais diletos companheiros.

Baixo, calvo, com barba branca e cumprida no queixo, bigodes raspados, pele demonstrando os sinais do tempo, vivia nosso irmão Pedro a contar seus causos e a fazer suas rezas, as quais lhes foram passadas por uma tradição que já havia se perdido no tempo. Na boca e pendurado meio que de lado, um cachimbo de barro onde as ervas naturais queimavam na forma de uma dança lenta e suave de Pedro, que em contrataste com a fumaça ou até mesmo por equilíbrio possuía duas grossas sobrancelhas as quais pareciam duas grandes calhas lotadas de neve.

O tempo passava solene e demarcando as necessidades e compromissos kármicos de cada ser vivo que habitava aqueles rincões. Tudo parecia correr bem até que nosso amigo Miguel veio a adoecer de uma doença grave e desconhecida, a qual pela braveza de sua infecção o deixou cego e incapacitado para a labuta de todos os dias.

Aquilo para Pedro foi mais forte que a dor de se ter a carne atravessada por um punhal nas mãos de um transloucado adversário. Quanta dor e quanto sofrimento passou nosso amigo Pedro ao ver nosso também querido Miguel se definhando e perdendo as forças a cada dia que passava.

Obstinado, mas sem ao menos poder saber quais os resultados colheria daquela empreitada, resolveu Pedro preceituar os entes queridos da natureza e do céu. Pediu auxilio imediato para as dores de seu patrão, sentindo inclusive que morreria junto com ele, pois não suportaria a perda de um ser tão justo e necessário na manutenção de todos que ali viviam. Muito obstinado, seguiu Pedro para uma pequena cachoeira que existia naquelas plagas, caminhando com dificuldades foi rezar para Papai Xangô, pedindo o alívio necessário para todos os males que o Kárma cobrava de nosso amigo Miguel.

Cegando a cachoeira e procurando abrigo para seu corpo cansado, sentou-se Pedro embaixo de um pé ingá, abrindo sobre uma pedra que ali estava uma pequena toalha, na qual colocou um ramo de lírios da cachoeira que havia colhido mais cedo, um candeeiro e um copo com um pouco de vinho que havia adoçado com mel. Feitas suas orações e chamado seu guia de fé (Pai Jerônimo) entrou Pedro num estado de sono que o levou a se deitar ali perto e cair nos braços de Morfeu, como uma criança que se sente embalada pela mãe nos atos de pura demonstração de carinho. Em seu sono profundo Pedro viu ao longe um homem de túnica branca, seguido por um guerreiro africano de porte altíssimo e ar de grande estirpe funcional. Ao longo de um pequeno riacho Pedro viu quando o homem de túnica branca se sentou em um pequeno monte forrado com algumas toalhas, seguido de uma multidão de pessoas com trajes humildes que se sentaram a seu lado. Extasiado pela cena, Pedro melhor observou o homem de túnica branca e reparou a manifestação de um vigor físico imenso, o qual ocupava um corpo cuja altura se aproximava de um metro e oitenta centímetros. De rosto bem delineado, sobrancelhas negras, nariz aquilino, barba rala e um ar de muita sabedoria, Pedro ouviu ao longe o som de sua voz que era forte e bem pausada.

Tentando se localizar, Pedro meio que sonolento, se viu deitado ao chão sobre uma maca feita de farrapos, cujo mau cheiro e a podridão imperavam de forma vergonhosa. Naquele minuto teve ímpeto de querer morrer, quando uma voz firme lhe chamou a atenção e lhe disse:

- calma irmão, pois somos uma só família e devemos nos arrepender de nossas falhas buscando amparar a nós mesmos através de todo bem que fizermos ao nosso próximo. Feche os seus olhos que vou buscar água e panos limpos para que sejam limpas as suas feridas.

Totalmente sem forças Pedro adormeceu junto ao seu humilde e mal cheiroso leito, vindo em sua mente toda à realidade que culminou naquelas série de desgraças. Em sua mente surgiram quadros de grandes orgias, compras de escravos e todos os infortúnios que a luxúria havia provocado em sua vida libertina e destemperada na época. Arrependido e triste por tanta insuflação da maldade, Pedro retornou do sono em que havia entrado e sentiu em sua pele a limpeza provocada pela boa vontade da voz que havia ouvido antes. Quando abriu seus olhos viu que o negro com trajes de guerreiro, o qual acompanhava o homem de túnica branca estava limpando suas feridas e lhe incentivando o ânimo a oitiva das boas palavras do bom homem de túnica branca. Meio atordoado, Pedro começou a prestar atenção no homem de luz inefável, quando começou a ouvir as seguintes frases.

- Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus.

- Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados.

- Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.

- Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque eles serão fartos.

-Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.

- Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus.

- Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus.

- Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.

- Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguiram e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa.

- Alegrai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram aos profetas que foram antes de vós.

Ouvindo aquelas verdades, Pedro sentiu uma indizivel liberdade de sua mente, todas as suas agruras foram-se embora, seu corpo parecia mais leve e foi grande o susto quando olhou em seu corpo e não viu mais nehuma ferida. Estagnado naquele chão onde se encontrava seu corpo já recuperado, Pedro só teve condições de segurar os braços daquele guerreiro de ébano que o ajuda e lhe perguntar agradecido o nome, momento que o mesmo com voz forte e segura lhe disse:

- Meu nome é alabê de Jerusalem, mas pode me chamar atualmente de Miguel....

Como um copro que cai no vazio Pedro acordou de subito junto a cachoeira e o pé de ingá em que havia adormecido, vendo ao longe um velhinho negro e de cabeça branca indo embora e desaparecendo no ar. Super emocionado Pedro voltou correndo para fazenda e quando se aproximava ouviu os toques de tambores e o sinal de que uma grande festa estava acontecendo naquele local. Quando chegou maais próximo, e, para sua surpresa viu na varanda da casa a figura de Miguel sentado e lhe olhando ao longe com um sorriso no rosto. Por incrivel que pareça e acreditem nisso, Miguel estava curado do mal subito que havia se abatido sobre ele. Com toda a dificuldaade do mundo Pedro se aproximou e beijou as mãos daquele que um dia havia lhe salvado a vida. Grossas l´grimas escorreram dos olhos de ambos irmãos compromissados e nosso conto se encerra por aqui, pois Pedro após seu desencarne, que não durou muito tempo, voltou para os céus e as vezes vem passear aqui na terra.

Miguel viveu ainda longos anos e hoje comanda uma falange ligada aos caboclos de umbanda como nome de filhos de Jerusalem, eu eu Pai Jerônimo continuo contando os meus causos para quem me der a graça de me emprestar os ouvidos.

Aratanan de Aracruz – Gostou dessa história?

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